REBELLION AND RESISTANCE IN THE IBERIAN EMPIRES, 16TH-19TH CENTURIES.

Resistencia/Resistir (ES) | Resistência/Resistir (PT)

Author: Ângela Barreto Xavier

Affiliation: ICS-Universidade de Lisboa

https://doi.org/10.60469/9xbk-qv95


Em 1728, no Vocabulario Portuguez & Latino, Rafael Bluteau define resistência como “a acção de oppor huma força a outra”, explorando, nos exemplos que oferece, algumas das dimensões sociais dessa acção. Assim, Bluteau refere uma situação de prisão evocada num texto latino, traduzindo-a como “de maneyra a que o prendão, sem resistência”. Aduz ainda os enunciados “Sem pessoa alguma fazer resistência”, “Na entrada do arrayal se fez huma galharda resistência”, ou até mesmo “Fazer resistencia às justiças,” dando conta do uso corrente desta palavra, por esta altura, a qual designava situações que, também hoje, designamos como resistência (Bluteau 1728, vol. 7: 283-284). Em 1789, porém, António de Moraes Silva dedica no seu Diccionario mais tempo aos significados físicos do vocábulo, apesar de aduzir, também, que resistência era a “vontade que nega, e repugna consentir, soffrer, obedecer”. É em “resistir” que Silva insiste mais nesta dimensão social, dando como exemplo o “resistir ao inimigo com mão armada; resistir á justiça não lhe obedecendo, ou usando de força” (Silva 1789, vol. 2: 612), o que também já fora referido, diga-se, por Bluteau (Bluteau 1728: 384). Curiosamente, no Diccionario da língua brasileira de Luís Maria da Silva Pinto, de 1832, é o sentido físico que prevalece (Pinto 1832).

O carácter oposicional associado à palavra (já presente na sua raiz latina, resistere) está presente em todos estes casos: para haver resistência, era necessário existir algo a que se opôr. Mas o significado predominante de resistência, na época moderna, era ainda o que dizia respeito à dimensão física desta oposição, caso da “resistência de corpos sólidos, como pedra, bronze, ou outro metal que rebate a impressão de outro corpo semelhante” (Bluteau 1728: 284).

Todavia, esta ideia de rebater “a impressão de outro corpo semelhante” caracterizou os usos políticos e sociais da palavra desde cedo, tanto nos dicionários portugueses, quanto nos espanhóis. É certo que, ao contrário de Bluteau, que insiste, de imediato, na ideia de oposição entre humanos, as definições que surgem em Covarrubias, em 1611, são mais abstractas: Covarrubias define a resistência como “la fuerza o contradicción que hacemos a alguna cosa” e resistir como o acto de “hacer contradicción” (Covarrubias 1611: 1223 /1). Já no Diccionario da Real Academia Española, de 1737, i.e., numa cronologia muito próxima de Bluteau, define-se resistência como “la accion de resistir”, aduzindo um exemplo – a tomada de umas ilhas “porque tendrían menor resistencia” – o que aponta para a dimensão política e social da palavra, o mesmo acontecendo com a definição do verbo resistir e os exemplos aí compulsados (RAE 1737: 594/1). As últimas décadas do século XVIII assinalam um enriquecimento dos significados destas palavras nas várias edições do Diccionario da Real Academia Española. No que diz respeito ao verbo “resistir”, estes acrescentam “repugnar, o contradecir”, “rechazar, repelir, o contrarestar”, “tolerar, aguantar o sofrir” (RAE 1780: 799/2; RAE 1783: 1814/3; RAE 1791: 728/1), na mesma altura que Terreros y Pando alargava ainda mais esses significados. Neste, a resistência já é associada à milícia ou à resistência “a un superior domestico”, bem como “en otros usos de la vida, accion con que alguno se defiende y opone a quién le acomiete”. Mas Terreros y Pando também assinala a resistência enquanto capacidade de durar, e a resistência interior às paixões desordenadas (Terreros y Pando 1788: 386/2; 387/1). Surpreendentemente, esse alargamento não está inscrito nos significados do Diccionario da Real Academia Española nas suas edições até meados do século XIX, como se depreende da edição de 1852, a mais próxima da data final deste projecto (RAE 1852: 607/1).

Uma pesquisa por outro tipo de fontes mostra, contudo, que a palavra já era bastante usada nos mundos ibéricos com um sentido político e social muito antes de estes significados passarem a fazer parte das suas definições nos vocabulários e dicionários do português e do espanhol, o que nos alerta, aliás, para os limites destas fontes e a tensão entre a pragmática da língua e a sua normatividade.

É o caso de uma sondagem pelo Corpus del Nuevo Diccionario Histórico de Español, o qual reúne textos variados que cobrem um período muito vasto da história da língua espanhola, a qual nos mostra que a ideia de oposição social e política associada às palabras resistência e resistir data, pelo menos, do século XIV. Por exemplo, na Chronica de España de Juan Férnandez de Heredia, a palavra surge treze vezes, associando-se esta, sobretudo, a situações militares da Antiguidade ou suas contemporâneas (“el qual contra los troianos fizo muyt dura resistencia” ou “el rey de Granada andaua seguro que no trobaua qui le deffendiesse ni le fizieis resistência en nenguna cosa”). Já na Crónica del Emperador Carlos V, de 1550, resistência surge quarenta e seis vezes, incluíndo, para além da resistência em contexto de guerra (e.g., “a resistencia a los turcos”), outras manifestações de resistência política. Entre 1376 e 1799, e tendo em consideração o material disponível neste Corpus, o vocábulo surge 3254 vezes, sempre com os mesmos sentidos militares, políticos, sociais. Entre 1800 e 1850, identificam-se 564 ocorrências, sendo que algumas delas, porém, reenviam para o sentido estritamente físico da palavra (CNDHE, lema “resistência”). 

Apesar de não dispormos de um portal equivalente para o caso português, também é justo dizer que as palavras resistência e resistir eram de uso corrente com os significados políticos e sociais atrás referidos. No teatro quinhentista português, por exemplo, ela surge em pelo menos treze textos dramáticos (CET-Quinhentos). Ela também é utilizada, com o mesmo sentido, por João de Barros, nas suas Décadas da Ásia, publicadas entre 1552 e 1563 (Barros 1945, vol. 2: 76, 150, 276; vol. 3: 35, 133, 393, etc.), por Damião de Góis, na Chronica del Rei Dom Emanuel, publicada em 1567 (Góis 1567, vol. 1: 10, 29, 37-40, 60, 74, 96), e na sua Chronica do Principe Dom Joam, publicada na mesma data (Góis 1567: 13). 

O mesmo acontece nas fontes históricas de carácter administrativo: as palavras “resistência” e “resistir” são utilizadas para descrever uma variedade de situações: as resistências às justiças (como atestam vários decretos de lei e leis, caso do alvará de 7 de dezembro de 1613, sobre os crimes aplicáveis ao crime de resistência às justiças, cometido no Estado da Índia, ANTT, Livro 3º de Leis, fl.8), as resistências individuais (caso do  Pleito de Fernán Ruiz de Castro, Alonso de Castro, Diego del Valle, Antonio e Andrés Ramos, de Segovia, em 1591, por “delitos de cuchilladas y resistência, (Archivo de la Real Chancellaria de Valladolid, PL Civiles, Pérez Alonso (OLV),Caja 1281,11), as resistências institucionais, e, sobretudo, em contexto militar, a resistência ao recrutamento, ao cumprimento da disciplina militar, e, acima de tudo, a resistência aos inimigos em situações de guerra defensiva. 

Em Portugal, assinalam-se dois momentos em que o vocábulo resistência surge com maior frequência em títulos de impressos – as denominadas guerras da Restauração, entre 1640 e 1668, e as invasões napoleónicas, entre 1807 e 1811. A Relaçam da famosa resistência, e sinalada vitoria, que os portugueses alcançarão dos castelhanos em Ouguela, este anno de 1644, a 9 de Abril, governando esta praça o capitão Pascoal da Costa ou as Últimas noticias de Saragoça, e sua última resistência, de 1809, esta última, uma tradução de um opúsculo espanhol, são dois exemplos de impressos que tinham uma grande circulação e que, por isso mesmo, contribuíram para que o termo se popularizasse. Todavia, a obra de referência sobre as invasões napoleónicas no mundo espanhol desse período, é a Historia del Levantamiento, Guerra y Revolucion de España do Conde de Toreno, de 1835, em cujo título, as palavras escolhidas não incluíam resistência. Ou seja, apesar de socialmente utilizada, a palavra resistência estava longe de ser hegemónica.

Todos estes exemplos assinalam situações de resistência activa, as quais mereceram uma significativa atenção por parte da historiografia. Mas, e à semelhança do Conde de Tereno, até às últimas décadas não foi a palavra resistência a que mais figurou nos títulos das muitas obras produzidas em torno a estas temáticas, mas sim revolta, rebelião, movimentos sociais, conflitos sociais, as quais reenviam, aliás, para os estudos fundadores de John Elliott (1963), Roland Mousnier (1967) e Eric Hobsbawm (1971). É caso para dizer com alguma ironia que houve alguma resistência por parte da historiografia em recorrer à palavra resistência. Até recentemente.

O recurso a esta palavra enquanto conceito historiográfico relaciona-se, desde logo, com a historiografia sobre as resistências desenvolvidas contra a Alemanha nazi, na primeira metade do século XX, no contexto da 2ª Guerra Mundial, e contra a União Soviética e outros regimes autoritários, na segunda metade deste século (Andrieu 2022; Vyola 2002; Michalczyk 2004). Mas também com a historiografia sobre as resistências anti-coloniais, sobretudo asiáticas e africanas. Uma mais focada no espaço europeu, outra privilegiando os territórios que estiveram sob domínio colonial de potências europeias, estas historiografias vulgarizaram a palavra no meio académico, de tal forma que, já no século XXI, esta se tornou omnipresente no campo historiográfico, tendencialmente substituindo, sobretudo na academia de matriz anglo-saxónica, aquelas que eram mais frequentes na historiografia relativa à época moderna.

A verdade é que, ao contrário daquela, tendencialmente mais centrada nas dimensões explícitas da resistência, a historiografia que recorre ao conceito resistência tornou evidente algumas dimensões menos visíveis e mais difíceis de estudar, caso da resistência passiva - – às quais se deu cada vez mais atenção após o movimento iniciado por Mahatma Gandhi, e que conduziu à independência da Índia – e da resistência cultural. Se a resistência passiva reenvia, de alguma maneira, para alguns dos significados originários da palavra resistência (i.e., a resistência de um corpo que insiste em permanecer num determinado estado), já o conceito de resistência cultural é utilizado pela historiografia de maneiras distintas. Enquanto alguns utilizam-no tendo presente o conceito clássico de cultura (englobando, por conseguinte, os “típicos” objectos culturais, como o teatro, a dança, a música, a literatura, etc., caso de Harlow 1987), outros entendem-na com uma conotação mais antropológica – caso de E. P. Thompson ou James H. Scott  (Thompson 1963; Scott 1985, 1990), mas também dos teóricos da Subaltern School (Guha 1983). Para estes, o cultural também constitui o social, o que permite identificar expressões da resistência em recantos bastante inesperados. 

Em suma, apesar de as palavras resistência e resistir terem tido bastante circulação desde a época medieval, a sua transformação em conceito historiográfico fundamental para entender os processos sociais, é relativamente recente. Todavia, a distância semântica entre o conceito (e as suas múltiplas faces) e as palavras usadas em épocas pretéritas requer que o uso de uns e de outros sejam sujeitos a múltiplas cautelas, de modo a evitar que o sujeito da análise e o seu objecto se tornem num só.


REFERÊNCIAS

Dicionários
Bluteau, Rafael, Vocabulario portuguez & latino, áulico, anatómico, architectonico […], vol. 7, Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1728, http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/rumor

Corpus del Nuevo Diccionario Histórico del Español (CNDHE). https://webfrl.rae.es/CNDHE/org/publico/pages/consulta/entradaCompleja.view 

Covarrubias, Sebastian de, Tesoro de la lengua castellana o española,  Madrid, Luis Sánchez, 1611. http://ntlle.rae.es/ntlle/SrvltGUILoginNtlle

Florentín, Lorenzo Ranciosini, Vocabolario español-italiano, ahora nuevamente sacado a luz [...]. Segunda parte. Roma, Iuan Pablo Profilio, a costa de Iuan Ángel Rufineli y Ángel Manni, 1620. P. 357, 2.

Hierro y Oliver, Antonio del, Manifiesto que publica el Teniente Coronel de los egercitos nacionales don Antonio del Hierro y Oliver, contra los escritos, rumores y dicterios de los que han pretendido infamarle, 1821, s.l., s.n.

Pinto, Luís Maria da Silva, Diccionario da Lingua Brasileira, Typographia de Silva, 1832, http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/3/rumor 

Real Academia Española (RAE), Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras cosas convenientes al uso de la lengua [...], Madrid, 1737,1780, 1783, 1791, 1852.

Roboredo, Amaro de, “Centúrias”, Porta de linguas ou modo muito accomodado para as entender publicado primeiro com a tradução Espanhola. Agora acrescentada a Portuguesa com numeros interliniaes, pelos quaes possa entender sem mestre estas linguas o que as não sabe [...], Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1623.

Silva, António de Moraes, Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, vol. 2, Lisboa, Typographia Lacerdina, 1789. http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/rumor

Fontes
“Alvará de 7 de Dezembro de 1613. Penas aplicáveis ao Crime de Resistência às Justiças, cometido no Estado da Índia” ANTT, Livro 3º de Leis, fl. 8.

Barros, João de, Ásia de João de Barros, 4 vols., Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1945 (1552-1563). 

Góis, Damião de, Chronica do Principe dom Ioam, rei que foi destes regnos segundo do nome (…), vol. 1, Lisboa, Francisco Correa, 1567.

Góis, Damião de, Chronica del Rei dom Emanuel, Lisboa, Francisco Correa, 1567.

“Pleito de Fernán Ruiz de Castro, de Segovia Alonso de Castro, de Segovia Diego del Valle, de Segovia Antonio, Andrés Ramos, de Segovia Sobre Delitos de cuchilladas y resistência”, Archivo de la Real Chancellaria de Valladolid, PL Civiles, Pérez Alonso (OLV),Caja 1281,11) .

Relaçam da famosa resistência, e sinalada vitoria, que os portugueses alcançarão dos castelhanos em Ouguela, este anno de 1644, a 9 de Abril, governando esta praça o capitão Pascoal da Costa, Lisboa, Off. Pascoal da Sylva, 1644.

Últimas noticias de Saragoça, e sua última resistência, Lisboa, Impr. Regia, 1809.

Bibliografia
Andrieu, Claire, “Revisiting the Historiography of the Resistance from the perspective of its local dynamics”, in Perspectives sur l'histoire, la culture et la société française, vol. 26, 2022, pp. 193-208.

Elliott, John H., The Revolt of the Catalans: A Study in the Decline of Spain (1598–1640), New York, Cambridge University Press, 1963.

Guha, Ranajit, Elementary Aspects of Peasant Insurgency in Colonial India, Delhi, Oxford University Press, 1983.

Harlow, Barbara, Resistance Literature, London: Routledge, 2023 (1987).

Hobsbawm, E.J., Primitive Rebels. Studies in Archaic Forms of Social Movement in the 19th and 20th Centuries, Manchester: Manchester University Press, 1971.

Michalczyk, John J. (ed.), Confront! Resistance in Nazi Germany, Peter Lang, 2004.

Mousnier, Roland, Fureurs paysans. Les paysans dans les révoltes du 17éme siècle (France, Russie, Chine), Paris: Calmann - Lévy , 1967.

Scott, James C., Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts. New Haven, Yale University Press, 1990.

Scott, James C., Weapons of the Weak: Everyday Forms of Peasant Resistance. New Haven & London, Yale University Press, 1985.

Thompson, E.P., The Making of the English Working Class, London: Victor Gollancz, 1963.

Viola, Lynne, ed., Contending with Stalinism. Soviet Power and Popular Resistance in the 1930s, Cornell, Ithaca: Cornell University Press, 2002.