REBELLION AND RESISTANCE IN THE IBERIAN EMPIRES, 16TH-19TH CENTURIES.

Jurema*

Author: Felipe Garcia de Oliveira

Affiliation: CHAM-NOVA FCSH



A Jurema é uma planta que dá nome a uma bebida alucinógena usada em rituais indígenas no norte e nordeste do Brasil. Sua origem é incerta, mas seu uso se modificou ao longo do tempo, mesclando-se com práticas religiosas africanas, afro-brasileiras e cristãs. Atualmente, o "complexo da jurema" refere-se à diversidade de plantas usadas e às diferentes formas de ritual associadas a ela, destacando trocas culturais, religiosas e botânicas ao longo da história (Mota e Barro 2002).
O termo jurema só é registrado em dicionários a partir do século XIX, porém, denúncias, cartas, relatos, normas e processos da Inquisição fornecem pistas sobre o quão difundido era o uso da planta. Na primeira metade do século XVIII, durante a interiorização da colônia nas regiões norte e nordeste, encontramos a maior quantidade de documentação. Por exemplo, em 1739, o governador da capitania de Pernambuco escreveu uma carta ao rei D. João V, convocando a Junta das Missões, órgão colonial responsável por julgar a administração dos indígenas, as guerras e o direito à liberdade, para investigar e reprimir o uso da jurema pelos indígenas do aldeamento de Boa Vista. Caso necessário, a Inquisição deveria ser acionada (Carta de Henrique Luís Pereira Freire de Andrade ao Rei D. João V, AHU_ACL_CU_015, Cx. 56\Doc. 4884; esse episódio e seus desdobramentos foram estudados por Apolinário, Freire e Diniz 2011; Wadsworth 2006 e 2013).
Outra fonte que fornece detalhes sobre o ritual é uma carta de denúncia à Inquisição escrita pelo padre capuchinho Frei José de Calvatam, em 1743. Em seu relato, embora influenciado por sua visão cristã que buscava legitimar a necessidade de erradicar tal prática, ele descreveu como era a preparação para o uso da bebida, administrada por um mestre. O ritual incluía cânticos, recitação de palavras e o toque de maracas. Segundo o padre, nem todos se entregavam a seu uso, pois causava certo medo, mas “aqueles que bebem jurema caem como mortos, mas ao serem tocados pelo mestre com o maracá e ao ouvirem uma cantiga, levantam-se repentinamente, caso contrário, não conseguem se levantar” (ANTT/Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor (107), livro 299, f. 381-382; este e outros casos foram estudados por Wadsworth, 2006, 2013).

Embora esses documentos não informem a “voz” direta dos indígenas, revelam o uso da jurema como forma de resistência cultural e religiosa. Junto às práticas das Santidades, o uso ritual da Jurema preocupou as autoridades coloniais, especialmente pela sua disseminação no século XVIII, nas regiões do Rio Grande, Piauí, Ceará e Bahia. Estudos destacam os rituais como expressões de resistência indígena contra imposições religiosas, mesclando o uso dessas substâncias alucinógenas para cura, proteção e contato com os encantados (Albuquerque, Mota 2002; Medeiros 2006; Apolinário, Freire, Diniz 2011; Palitot, Grunewald 2021). Tal prática e uso ganhou contornos importantes para ser mencionados pelo Diretório Pombalino. Assim, o Diretório Pombalino de Pernambuco do século XVIII regulava o uso de aguardente para fins medicinais e proibia as "juremas contrárias aos bons costumes e sem utilidade" (18º parágrafo, Direção com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da capitania de Pernambuco e suas anexas, 1883:129).
Os dicionários de botânica de fins do século XIX já apresentavam uma variedade de juremas: a branca, a marginada e a preta. A última, que é a que nos interessa, pois era a que era a usada para os rituais, é definida do seguinte modo: uma espécie de Acacia jurema marl, um tipo de Jurema que era própria das regiões de caatinga e dos sertões.  Seguia a definição: “É esta a grande planta, de que os caboclos faziam a beberagem, com que dizem elles, se encantam e se transportam ao céo”; “Entretanto é bem medicinal; asseverou-nos um sertanejo a sua eficácia para extirpar os cancros, só com a entre-casca, usada em emplastro. Nada podemos assegurar” (Pinto 1873: 260) No dicionário de Chernoviz só consta uma espécie de jurema, sendo “acácia jurema, Martius. Leguminosa. Arvore do Brazil em Minas, Bahia, Pernambuco. Sua casca é adstringente, e o cozimento desta casca emprega-se em banhos contra as inchações erysipelatosas. 30 gramas para 1 litro de água” (Chernoviz, 1890: 239).
A tradição da jurema foi se transformando ao longo do tempo e do espaço. Sua prática ganhou destaque, sendo registrada em relatos de viagens (Koster 1978) e na literatura brasileira no clássico “Iracema”, de José de Alencar. Atualmente, o termo carrega uma variedade de significados, referindo-se tanto à árvore, à bebida feita a partir dela, quanto a uma entidade espiritual presente em diversos rituais de religiões de matriz africana e indígena.

* Palavra com origem num idioma não dominante dos impérios ibéricos.


REFERÊNCIAS

Dicionários
Chernoviz, Pedro Luiz Napoleao, Diccionario de medicina popular e das sciencias accessorios para uso das familias, contendo a descripção das Causas, symptomas e tratamento das moléstias; as receitas para cada molestia; As plantas medicinaes e as alimenticias; As aguas mineraes do Brazil, de Portugal e de outros paizes; e muitos conhecimentos uteis, 6ª ed., Paris, A Roger & F Chernoviz, 1890.

Pinto, Joaquim de Almeida, Diccionario de botanica brasileira ou compendio dos vegetaes do Brasil, tanto indigenas como acclimados, Rio de Janeiro, Typ. Perseveranca, 1873.

Barreto, Marcus Vinícius, "Jurema", In Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2019. 

Fontes manuscritas
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa (ANTT/IL). Cadernos do Promotor (107), livro 299, Carta do [governador da capitania de Pernambuco], Henrique Luís Pereira Freire de Andrada, ao rei [D. João V]. 1741, julho, 1, Recife.; AHU_ACL_CU_015, Cx. 56, D. 4884.

Fontes impressas 
Koster, Henry, Viagens ao Nordeste do Brasil, 2ª ed., Recife, Secretaria de Educação e Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Departamento de Cultura, 1978 (Coleção Pernambucana, 17).

“Direção com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares eretos nas aldeias da capitania de Pernambuco e suas anexas”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, XLVI, parte I, 1883, 121- 171.

Bibliografia
Albuquerque, U.; Mota, C. (eds.), Os muitos usos da Jurema, Recife, Bagaço, 2002.

Apolinário, Juciene R.; Freire, Gláucia de S.; Diniz, Muriel O., “Denúncias e visitações ao território mítico da Jurema: relações de poder e violência entre representantes inquisitoriais e líderes religiosos Tarairiú na Parahyba setecentista”. In E. S. Couto et al. (orgs.), Anais Eletrônicos – Simpósio Internacional de Estudos Inquisitoriais: História e Historiografia, Cachoeira, UFRB, 2011.

Grünewald, Rodrigo de Azeredo, “Sujeitos da Jurema e o resgate da “ciência do índio” In B. C. Labate;, S. L. Goulart (orgs.), O uso ritual das plantas de poder, Campinas, Mercado das Letras, 2005, 239-277.

Grünewald, Rodrigo de Azeredo, Jurema, Campinas, Mercado de Letras, 2020.

Lima, Osvaldo Gonçalves de, “Observações sobre o ‘vinho da Jurema’ utilizado pelos índios pancarú de Tacaratú (Pernambuco)”, Separata de Arquivos do IPA, v. 4, Recife, Imprensa Oficial, 1946, 45-80.

Medeiros, Guilherme, “O uso ritual da jurema entre os indígenas do Brasil colonial e as dinâmicas das fronteiras territoriais do Nordeste no século XVIII” Clio Arqueológica, n. 20, v. 1, 2006, 123-150.

Mota, C. N. e Barros, J. F. P. “O Complexo da Jurema: representações e drama social negro-indígena”, in C. M. Mota, U. P. Albuquerque (orgs.), As Muitas faces da Jurema: de espécie botânica à divindade afro-indígena, Recife, Bagaço, 2002, 19-60.

Palitot, E.; Grunewald, Rodrigo Azeredo, “O país da jurema: revisitando as fontes históricas a partir do ritual atikum”. Acervo, [S. l.], v. 34, n. 2, p. 1–21, 2021.

Plöger, Tilo, Catimbó - Jurema Sagrada:The Indigenous Tradition of the Sacred Jurema - Brazilian Shamanism. Hamburg: tredition GmbH, 2022.

Vieira Júnior, A. O. “De menino voador, sabá e iluminismo: notícias da Inquisição no sertão do Ceará”. Antíteses Londrina, v. 4, n. 8, p. 783-800, jul./dez. 2011.

Wadsworth, James E. “Jurema and Batuque: Indians, Africans, and the Inquisition in Colonial Northeastern Brazil.” History of Religions 46, no. 2, 2006, p. 140–62. https://doi.org/10.1086/511448.

Wadsworth, James E. Uma nova invenção da bruxaria diabólica: a jurema e a Inquisição. In: Resende, M. L. C.; Furtado, J. Travessias inquisitoriais: das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2013. p. 375-392.