REBELLION AND RESISTANCE IN THE IBERIAN EMPIRES, 16TH-19TH CENTURIES.

Indio (ES) | Índio (PT)

Author: Felipe Garcia Oliveira

Affiliation: CHAM-NOVA FCSH



O termo “índio” (do latim indus) tem a sua existência datada desde antes do processo de colonização das Américas. Nos séculos XV e XVI, as suas primeiras definições dicionarizadas estavam vinculadas às Índias Orientais. No dicionário latino-espanhol de Nebrija de 1495, contemporâneo à chegada dos europeus às Américas, o termo índio já aparece registrado, mas não como substantivo para designar um povo, e sim como adjetivo derivado de “Índia”, com o significado de “cosa desta região” (Nebrija 1495: fol. LXIIv). Nos dicionários do século XVII, o sentido pouco foi alterado: em César Oudin, é definido como “o indiano, indien, qui est des Indes” (Oudin 1607: 316). Em Lorenzo Franciosini, é definido como “o Indiano. [Indiano. D’India]” (Franciosini 1620: 442). O mesmo sentido estava presente nos dicionários portugueses. Embora Cardoso somente registre a existência do vocábulo “indus” (Cardoso 1562: 67v), Barbosa articula-o com “Índia” e “coisa da Índia” (Barbosa 1611: 624).  No fim do século XVII, Bento Pereira, em seu Prosodia in Vocabularium, também definiu “Indus” como “coisa da Índia” e “Indi” como “Os Índios, os naturais da Índia” (Pereira 1697: 131).
O equívoco de Colombo, ao supor ter alcançado as Índias Orientais, resultou, ao longo do tempo, na adoção do termo índio como designação genérica para os povos originários das Américas. Trata-se, portanto, de um termo que possuía sentido anterior, reconfigurado em contexto colonial para nomear o “outro”. Como mencionado anteriormente, não é possível identificar nos dicionários do período uma definição direta referente aos nativos das Américas. No entanto, já no final do século XV e início do XVI, as cartas de Colombo, os escritos do Padre Bartolomé de Las Casas e as diversas cédulas reais da Coroa Espanhola empregavam o termo nesse sentido, consolidando seu uso como categoria social (Alcides Reissner 1983; Paiva 2015). No início do século XVII, Covarrubias formalizou finalmente a mudança ao definir o termo “Índia”. Segundo ele, além da conhecida “region Oriental”, havia as “Indias Orientales y Ocidentales, dela mayor parte de ambas y de lo descubierto dellas es senhor la Masgestad del Rey Filipo Tercero”. Informava ainda a existência de vários escritos e crônicas sobre a região, por isto não iria se deter ao tema. Mesmo sem dedicar verbete próprio ao termo “índio”, deu-lhe definição: “indio el natural de la India: indiano el que ha ido a las Indias, que de ordinario estos bueluen ricos” (Covarrubias y Orozco 1611: 502 v).

No caso português, de modo semelhante ao que ocorre na tradição castelhana, em que não se dicionariza de imediato o termo para os habitantes das Américas, a referência mais antiga conhecida ao uso de “índio” remonta ao século XVI. Em 1546, Duarte Coelho Pereira, capitão donatário de Pernambuco, empregou a grafia “imdeo” em carta enviada ao rei de Portugal, na qual descrevia a resistência dos nativos frente à exploração do pau-brasil. Em 1549, o padre jesuíta Manuel da Nóbrega também utilizou o termo “índio” ao referir-se aos nativos (Paiva 2015: 178). Os documentos relacionados ao Brasil revelam, contudo, que os portugueses recorreram a uma série de outras designações para os ameríndios, como brasis, brasílicos, gentios, negros da terra, gentios da terra, gentios do cabelo corredio, entre outros. Essas denominações, por sua vez, estavam fortemente vinculadas à condição religiosa e, em particular, ao critério de cristianização ou não dos indígenas (Cardim 2019; Garcia 2019).
Neste sentido, o termo índio se configurou como uma categoria jurídica colonial que tendeu a anular a multiplicidade e a homogeneizar as distinções culturais e linguísticas das populações originárias (Bonfil Batalla 1977; Alcides Reissner 1983; Cunha 1992; Zavala 2011). Ele também designava um estatuto jurídico que legitimava formas de exploração e situava os indígenas em uma posição de menoridade, como sujeitos a serem tutelados, cristianizados e civilizados (Baber 2009; Cardim 2019). Foi precisamente a partir dessa concepção jurídica de índio como menor e tutelado que o termo passou a ser reapropriado pelos próprios indígenas. A historiografia tem demonstrado que, desde os primeiros contatos, o conceito assumiu contornos jurídicos que puderam ser mobilizados por estes grupos em diferentes arenas, seja na reivindicação de privilégios de foro, na obtenção de concessões de terra ou na busca de proteção contra a escravização, em virtude da condição de vassalos do rei atribuída aos indígenas (Baber 2009; Cunill 2011; Van Deusen 2015; Owensby 2015; Garcia 2019; Pennock 2023). Reapropriado e mobilizado por grupos indígenas, o termo índio adquire um protagonismo sem paralelo no contexto das práticas e discursos de resistência nas Américas.
No século XVIII, os dicionários ibéricos passaram a fazer referência direta aos povos das Américas, sinal de que essas obras incorporaram as novas dinâmicas sociais da colonização. No caso português, o monumental Vocabulário Portuguez e Latino de Rafael Bluteau registra duas acepções para “índio”: em primeiro lugar, “Natural da Índia”; em seguida, “povos da América”, acrescentando que, no Brasil, “dividem os Portuguezes aos Bárbaros, que vivem no Sertão em Índios mansos, & bravos” (Bluteau IV, 1713: 110). Tal distinção ecoava diretamente as classificações coloniais entre índios amigos/mansos e inimigos/bravos, que orientavam políticas diversas da Coroa. O termo “índio” podia ainda ser qualificado com outros atributos que definiam o seu estatuto jurídico, como índio forro (tutelado), índio cativo (escravizado), índio nobre (beneficiário de privilégios régios) ou índio aldeado (submetido ao regime de aldeamento) (Perrone-Moisés 1992; Van Deusen 2015; Cardim 2019). Esse registro lexicográfico revela, assim, como o dicionário passou a integrar os espaços coloniais americanos à ordem semântica do império, sem, contudo, apagar as referências à Índia Oriental. 

No caso espanhol, ainda no século XVIII, o Diccionario de Autoridades da Real Academia registra duas entradas para “indio”: primeiro como “el natural de la India, originaria de aquellos Reinos, hijo de padres Indios”; e depois como adjetivo, “lo que pertenece a las Indias: como Lengua India, trage Indio” (Diccionario de Autoridades. Real Academia Española 1734, t. IV: 253). Já em meados do século XIX, Ramón Joaquín Domínguez definia “indio” como “Natural de la India ó de las Indias; concerniente ó relativo á la India ó á las Indias”, acrescentando que o nome, antes próprio da Índia Oriental, passara “por un abuso nacido de una equivocacion” a designar também os habitantes do novo continente (Domínguez 1853: 979). Ao final do século XIX, Zerolo consolidava a definição, ampliando-a: “Natural de la India, ó sea de las Indias Orientales”; mas também “del antiguo poblador de América, ó sea de las Indias Occidentales, y del que hoy se considera como descendiente de aquel sin mezcla de otra raza. Dicese también de las cosas: traje indio; lengua india” (Zerolo 1895, II: 89). Essa trajetória revela como a lexicografia espanhola reconheceu a equivocação histórica que estendeu o termo às Américas, mas ao longo do tempo a cristalizou como categoria legítima, dotada de forte conotação de alteridade.
A relação entre os termos “índio” e “indígena”, tal como a entendemos hoje, remonta ao século XIX, quando o segundo passou a ser empregado como sinônimo do primeiro (Zavala 2011). “Índio” é atualmente considerado um termo pejorativo, por carregar o histórico de imposição colonial que homogeneizou culturas, modos de vida, línguas e crenças distintas, além de ter funcionado como categoria jurídica e social de sujeição. A preferência por expressões como “povos originários”, “ameríndios”, “nativos”, “povos indígenas”, ou simplesmente “indígenas”, tem sido uma tônica nas últimas décadas e objeto de intensos debates em diálogo com os processos de autoafirmação política e identitária dos próprios povos (Munduruku 2018; Pennock 2023). É importante lembrar, no entanto, que o vocábulo indígena não é recente: sua definição como “natural” ou “nativo” de algum lugar, em sentido mais “neutro”, já se encontra registrada desde o final do século XV.


REFERÊNCIAS

Dicionários
Bluteau, Rafael, Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico, brasilico…Vol. IV, Lisboa, na officina de Pascoal da Sylva, 1713, https://purl.pt/13969. 

Barbosa, Agostinho, Dictionarium Lusitanico Latinum (...), Bracharae, Typis, & expensis Fructuosi Laurentij de Basto, 1611, https://purl.pt/14016     

Cardoso, Jerónimo, Dictionarium ex Lusitanico in latinum sermonem, Ulissypone, ex officina Ioannis Aluari, 1562, https://purl.pt/15192

Covarrubias y Orozco, Sebastián de, Tesoro de la lengua castellana o española, Madrid, por Luis Sanchez, 1611, https://www.cervantesvirtual.com/obra/tesoro-de-la-lengua-castellana-o-espanola-0/

Nebrija, Elio Antonio de, Vocabulario español-latino, Reproducción digital de la edición de Salamanca, 1495[?] https://www.cervantesvirtual.com/nd/ark:/59851/bmcvm466

Pereira, Bento, Prosodia in vocabularium bilingue, Latinum, et Lusitanum digesta... Eborae, ex Typographia Academiae, 1697, https://purl.pt/30226

Real Academia Española (RAE), Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras cosas convenientes al uso de la lengua [...], Tomo quarto. Que contiene las letras G.H.I.J.K.L.M.N., Madrid, Imprenta de la Real Academia Española, por los herederos de Francisco del Hierro, 1734, https://webfrl.rae.es/DA.html. 

Domínguez, Ramón Joaquín, Diccionario Nacional o Gran Diccionario Clásico de la Lengua Española (1846-47), 2 vols, Madrid-Paris, Establecimiento de Mellado, 1853. https://apps.rae.es/ntlle/

Franciosini Florentín, Lorenzo, Vocabolario español-italiano, ahora nuevamente sacado a luz [...], Roma, Iuan Pablo Profilio, a costa de Iuan Ángel Rufineli y Ángel Manni, 1620, https://apps.rae.es/ntlle/

Zerolo, Elías, Diccionario enciclopédico de la lengua castellana (...),Tomo II, Paris, Garnier hermanos, 1895, http://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000137653.

Bibliografia
Alcides Reissner, Raúl, El índio em los diccionarios. Exégesis léxica de um estereotipo. Serie de Antropologia Social, México, Instituto Nacional Indigenista, 1983. http://bibliotecadigital.inpi.gob.mx:8080/bitstream/handle/123456789/1077/255216.pdf?sequence=1&isAllowed=y   

Baber, Jovita, “Categories, Self-Representation and the Construction of the Indios”, Journal of Spanish Cultural Studies 10, nº 1 (2009), pp. 27-41.

Bonfil Batalla, Guillermo, “El concepto de Índio en America: uma categoria de la situacion colonial”, Anales de Antropología 9 https://doi.org/10.22201/iia.24486221e.1972.0.23077.

Cardim, Pedro, “Os povos indígenas, a dominação colonial e as instâncias de justiça na América portuguesa e espanhola”, in Ângela Domingues; Maria Leônia Resende e Pedro Cardim (orgs.), Os Indígenas e as Justiças no Mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI-XIX), Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2019, pp. 29- 84.

Cunha, Manuela Carneiro da (org.), História dos Índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras / Secretaria Municipal de Cultura / Fapesp, 1992. 

Cunill, Caroline, “El indio miserable: nacimiento de la teoría legal en la América colonial del siglo XVI”, Cuadernos inter.c.a.mbio 8, nº 9 (2011): 229-248. 

Garcia, Elisa Frühauf, “Las categorías de la conquista: las mujeres nativas en el vocabulario del siglo XVI (São Vicente, Brasil)”, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, publicado a 19 de fevereiro de 2019, http://journals.openedition.org/nuevomundo/75613

Julio, Suelen Siqueira, Gentias da terra. Gênero e etnia no Rio de Janeiro colonial, Niterói: Universidade Federal Fluminense (Doutorado em História Moderna), 2022.

Owensby, Brian, Empire of Law and Indian Justice in Colonial Mexico, Stanford, Stanford University Press, 2008.

Paiva, Eduardo França, Dar nome ao novo: uma história lexical da Ibero-América entre os séculos XVI e XVIII, Belo Horizontes, Autêntica Editora, 2015.

Pennock, Caroline Dodds, On Savage Shores. How Indigenous Americans Discovered Europe, New York, Alfred A. Knopf, 2023.

Perrone-Moisés, Beatriz, “Inventário da Legislação Indigenista 1500-1800”, in Manuela Carneiro da Cunha (org.), História dos Índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, pp. 115- 132.

Van Deusen, Nancy, Global Indios. The Indigenous Struggle for Justice in Sixteenth Century, Durham; London, Duke University Press, 2015.

Zavala, Ana Luz Ramírez, “INDIO/INDÍGENA, 1750-1850”, Historia Mexicana 60, nº 3 (2011): 1643-1681.

Outros suportes: 
Vídeo
Munduruku, Daniel, “Usando a palavra certa pra doutor não reclamar” Itaú Cultural, São Paulo, 2018, https://www.itaucultural.org.br/usando-a-palavra-certa-pra-doutor-naoreclamar