REBELLION AND RESISTANCE IN THE IBERIAN EMPIRES, 16TH-19TH CENTURIES.

Hostil/Hostilidad (ES) | Hostil/Hostilidade (PT)

Author: João Espadeiro Ramos

Affiliation: CIDEHUS-Universidade de Évora

https://doi.org/10.60469/dedy-6g89


Os dicionários mais antigos relacionam hostil com “ennemy” (Palet 1604: 176, 2), ou, com mais descrição, com “nemico, contrario, averso” (Vittori 1609: 353, 1). Também para Portugal, Bento Pereira acrescenta a hostil uma natureza pública: “o inimigo, a inimiga públicos” (Pereira 1697: 310, 1). Na primeira leva do seu dicionário, Rapahel Bluteau não fez constar o termo hostil, mas apenas hostilidade, que definiu como “Acçaõ violenta do inimigo na guerra” (Bluteau 1713, v.4: 66, 2). Catorze anos mais tarde, nos suplementos, já surge o termo hostil que “Derivase do Latim Hostis, e val o mesmo, que cousa do inimigo.” (Bluteau 1727, v. 9: 500, 1). Nesta última entrada, Bluteau remete ainda para “hoste” que descreve como “Palavra antiga, que val tanto, como Soldados em campanha contra o inimigo” (Bluteau 1713, v.4: 85, 2). Os dicionários da Real Academia Espanhola vão no mesmo sentido e o termo mantem, ao longo do século XVIII, a definição da edição de 1734: “Cosa contrária ò enemiga” (RAE, 1734, 184, 1). A sua conotação é clara, o termo aplica-se ao contexto de guerra. O que não contraria o enquadramento de Bento Pereira, pois que a guerra, não haja dúvida, é uma inimizade bastante pública. 

Ainda que, entre os séculos XVI e XIX, no contexto das resistências, surjam muitas revoltas tendo como protagonistas soldados que se opunham à estrutura militar de comando, não se estava perante acção inimiga, mas, maioritariamente, divergência na gestão dos recursos e por isso não surge uma utilização coeva do termo nesse contexto. Fora do contexto da relação entre hostilidade e guerra, o surgimento desses termos pode ser escasso. Consultadas duas obras fundamentais da literatura ibérica, Os Lusíadas e El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, os termos hostil e hostilidade não surgem nas mesmas, o que poderá denotar que estavam afastados do quotidiano da generalidade das pessoas, ou pelo menos, dos letrados. 

Como seria de esperar, o termo surge na literatura de guerra. Na História de Portugal Restaurado, do Conde da Ericeira, o termo hostilidades é utilizado sempre com o sentido de acções bélicas: “muitas hostilidades” (Menezes 1751, t. II: 122); “todas as hostilidades possíveis” (Menezes 1751, t. II: 314); “hostilidades de huma, e outra parte;” (Menezes 1751, t. IV: 211); “fazendo hostilidades” (Menezes 1751, t. IV: 412). O tratado de paz assinado para dar fim à mesma guerra (Menezes 1751, t. IV: 580-587), também ele, caracteriza o fim da guerra como a cessação de “todos os actos de hostilidade” (artigos I e V).

Nos raros documentos manuscritos em que os termos surgem, os mesmos não divergem muito desse contexto. Em 1678 o embaixador em Génova envia missiva ao rei de Espanha, sobre a “ostilidad echa por las galeras de Françia enaquellas Costas” (AGS, EST,LEG,3616,187, fl. 8). No contexto da Guerra da Sucessão Espanhola encontramos, pela primeira vez, uma nuance na associação de hostilidade a guerra. Filipe V escreve ao Papa Clemente XI, apoiante do seu rival na pretensão ao trono de Espanha, associando esse posicionamento a “un acto sumamente hostil, injurioso á mi cetro y monarquia” (BNE, Hemeroteca Digital, El amigo de las Leyes, nº 29, 29/3/1818: 116, 2). Ainda que em contexto de guerra, o “acto hostil” é utilizado para caracterizar não beligerantes, mas a relação de interveniente com posicionamento contrário.

Durante o século XVIII, hostil ou hostilidades mantêm-se no contexto de guerra. É em 1822 que encontramos a evolução, que os dicionários viriam a registar. Num contexto de lutas internas em Espanha contra o republicanismo, associando-se “aptitud hostil” àqueles que são opositores ao poder vigente (BNE, Hemeroteca Digital, Diário de la Ciudad de Barcelona, 26/5/1822: 238) Também no Império português, no mesmo ano, o periódico Brazil d’Ouro, em resposta a uma publicação da Gazeta Universal, de cariz absolutista, acusa este último periódico de “fazer os maiores elogios ao primeiro acto criminoso e hostil que depois da nossa Regeneração se há cometido”. (AHU, CU, Bahia, cx. 269, doc. 18984). Em ambos os exemplos o termo hostil surge num contexto, não de guerra, mas de facções políticas. Parece evidente a identificação de hostil com qualquer ato de resistência ao poder estabelecido. Em meados do séculos XIX, nos dicionários, a descrição já sofre um acrescento e hostil aparece, também, descrito como o que “daña ó que se hace com intencion de dañar.” (Dominguez 1853: 955, 3). 

Na bibliogafia actual o termo hostil é muitas vezes utilizado para descrever as relações entre os povos indígenas e os colonizadores dos seus territórios. Utilizado até para dividir entre os indígenas que tinham relações amigáveis com os colonizadores e os que resistiam ao processo de colonização, sendo estes os hostis. Não se encontrou, de forma generalizada a utilização do termo na documentação coeva. Das raras exceções será uma carta do Padre António Ximenez, da Companhia de Jesus no Rio Uruguai, de 1701, em que o mesmo declara as “hostilidades e agravos” que os índios infiéis fizeram aos índios cristãos (BNB, acervo digital). Ainda que não no contexto da guerra convencional europeia, seria um eventual conflito entre povos. Isso é mais evidente em carta posterior, relativa a Buenos Aires, em que se diz que “los Yndios Guaranies Christianos á hacer entrada contra los Yndios Infieles Abipones, q infestan y hostilizan essa Ciudad” (Viana, 1970, p.235). Acresce ainda, que pelo menos no caso do Império português na América, na relação entre colonizadores e colonizados, aos “povos que resistem, contudo, aplica-se o princípio da guerra justa” (Perrone-Móises, 2000, p.116). A aplicação deste conceito servia, por exemplo, para escravizar indígenas, o que de outro modo era proibido. Os exemplos dos conflitos entre indígenas e a aplicação do conceito de guerra justa, deixam antever como o termo hostil, na bibliografia actual, se transferiu de um contexto de guerra para um contexto de colonização. Mas, como se disse, o termo nunca se generalizou nos documentos coevos e mesmo quando hoje surge nos arquivos, trata-se de uma aplicação retroactiva do mesmo. Podemos ver isso no caso português, num documento de 1757, relativamente à chegada inesperada de uma esquadra francesa ao Rio de Janeiro, em que a descrição arquivística refere “uma atitude desconfiada e hostil da população”, contudo, no conteúdo do mesmo, a menção feita é que os recém chegados foram “bruscamente tratados” (AHU, CU, Bahia-CA, cx. 16, doc. 2936-2963). E mais evidente ainda no caso Espanhol, num documento de 1593, nomeado pelo arquivo de “Información sobre actitud hostil del rey de Champa”, mas que no manuscrito o que se diz é que o dito rei “haçe muchos ynsultos salteamientos y Rovos” (AGI, Filipinas,6,r.7,n.106, fl 1).


REFERÊNCIAS

Dicionários

Bluteau, Rapael, Vocabulario Portuguez & Latino, aulico, anatomico, architectonico..., Tomo IV e IX, Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1713 e 1727. https://www.bbm.usp.br/pt-br/dicionarios/vocabulario-portuguez-latino-aulico-anatomico-architectonico/?q=hostilidade#dic-viewer

Domínguez, Ramón Joaquín, Diccionario Clásico de la Lengua Española, Madrid, Establecimiento Tipográfico de Mellado, 1853. https://apps.rae.es/ntlle/SrvltGUIMenuNtlle?cmd=Lema&sec=1.0.0.0.0.

Palet, Juan, Diccionario muy copioso de la lengua española y francesa [...]. Dictionaire tres ample de la langue espagnole et françoise, París, Matthieu Guillemot, 1604. https://apps.rae.es/ntlle/SrvltGUIMenuNtlle?cmd=Lema&sec=1.0.0.0.0.

Pereira, Bento, Prosodia in vocabularium bilingue, Latinum, et Lusitanum digesta... / Auctore Doctore P. Benedicto Pereyra...., Évora, ex Typographiâ Academiae, 1697. https://purl.pt/30226/1/index.html#/324-325/html

Real Academia Española, Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras cosas convenientes al uso de la lengua [...]. Compuesto por la Real Academia Española. Tomo quarto. Que contiene las letras G.H.I.J.K.L.M.N, Madrid, Imprenta de la Real Academia Española, por los herederos de Francisco del Hierro,1734. https://apps.rae.es/ntlle/SrvltGUIMenuNtlle?cmd=Lema&sec=1.0.0.0.0.

Vittori, Girolamo, Tesoro de las tres lenguas francesa, italiana y española. Thresor des trois langues françoise, italienne et espagnolle, Ginebra, Philippe Albert y Alexandre Pernet, 1609. https://apps.rae.es/ntlle/SrvltGUIMenuNtlle?cmd=Lema&sec=1.0.0.0.0.

Fontes 
Biblioteca Nacional de España, Hemeroteca Digital, El amigo de las Leyes, nº 29, 29/3/1818 (Consultado em https://hemerotecadigital.bne.es/hd/es/viewer?id=41f27465-e8d7-4238-bca3-d46e31c92839&page=2, a 11/4/2024).

Biblioteca Nacional de España, Hemeroteca Digital, Diario de la ciudad de Barcelona, 26/5/1822 (Consultado em https://hemerotecadigital.bne.es/hd/es/viewer?id=cff99360-d6c0-4bed-a9f8-9d6b03579078, a 11/4/2024).

“Carta (extrato) do [governador das armas da província da Bahia, Inácio Luís Madeira de Melo] ao rei [D. João VI] comunicando a situação de desordem existente na referida província”, Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Conselho Ultramarino  (CU), Bahia, cx. 269, d. 18984.

“Carta de Manuel Coloma, embajador en Génova, a Carlos II, rey de España, dando cuenta de la situación de tensión entre Francia y Génova, tras el suceso hostil de la armada Francesa en Génova”, Archivo General de Simancas, EST,LEG,3616,187 (Consultado em https://pares.mcu.es/ParesBusquedas20/catalogo/show/3589090?nm, a 11/4/2024).

Camões, Luís de, Os Lusíadas, texto em formato digital proveniente da Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro (Consultado em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000162.pdf, a 11/4/2024).

“Certificación de las hostilidades que sufren los indios guaranís de los indios infieles”, Biblioteca Nacional do Brasil, Acervo digital. (Consultado em http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mssp0002178/mssp0002178.pdf , a 27/5/2024)

Cervantes Saavedra, Miguel de, El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, Barcelona, Imprenta de Tomás Gorchs, 1859 (Consultado em https://www.toledo.es/wp-content/uploads/2017/01/don-quijote-de-la-mancha-1859-primera-parte.pdf e https://www.toledo.es/wp-content/uploads/2017/01/don-quijote-de-la-mancha-1859-segunda-parte.pdf, a 11/4/2024).

“Información sobre actitud hostil del rey de Champa”, Archivo General de Indias, Filipinas, 6, r.7, n.106 (Consultado em https://pares.mcu.es/ParesBusquedas20/catalogo/description/420346?nm, a 11/4/2024).

Menezes, D. Luís de, História de Portugal Restaurado, Tomo II e IV, Lisboa, Oficina de Domingos Rodrigues, 1751.

“ofício do vice-rei, conde dos arcos, ao Tomé Joaquim da Costa Corte Real, sobre pânico, desconfiança e hostilidade no Rio de Janeiro causados pela chegada de uma esquadra francesa com seis navios que fundeou inesperadamente no porto”, Arquivo Histórico Ultramarino, (AHU, Conselho Ultramarino (CU), Bahia-CA, cx. 16, doc. 2936-2963.

Viana, Hélio (cord.), Manuscritos da Coleção De Angelis, v. IV: Jesuitas e Bandeirantes no Uruguai, (1611-1758), Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1970.

Bibliografia
Perrone-Moisés, Beatriz. “Terras indígenas na legislação colonial”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 95, 2000, 107-120.