REBELLION AND RESISTANCE IN THE IBERIAN EMPIRES, 16TH-19TH CENTURIES.

Gitano/a (ES) | Cigano/a (PT)

Author: Isa Maria Moreira Liz

Affiliation: PIUDHist-CIDEHUS-Universidade de Évora

https://doi.org/10.60469/7fcn-dh85


Os primeiros registos descritivos relativos ao conceito de gitano/a em dicionários espanhóis vêm associados à vida boémia, às artes mágicas (Palet, 1604: 165), e à sua suposta origem histórica do Egito (Oudin, 1607: 284). O primeiro documento a fazer referência restrita aos grupos ciganos é um decreto de expulsão assinado pelos reis católicos em 1499 (Dhrier, 2007: 103–104), por pressão do Consejo de la Mesta – uma organização de proprietários de gado com poder político-económico em Castela. Os séculos seguintes foram marcados por uma série de ataques e condenações aos ciganos, tidos por nómades (Idem:  100–101), não apenas na Península Ibérica, mas também em territórios vizinhos e nas colónias.

Num primeiro momento, a punição religiosa de vagar sem domicílio vem também vinculada à vagabundagem e à enganação, seja por furto ou pela adivinhação do futuro: “Cierta classe de gentes, que asectando ser de Egypto, en ninguna parte tienen domicilio, y andam sempre vagueando. Engañan à los incautos, diciendoles la buena ventira por las rayas de las manos y la phisonomia del rostro [...]. Su trato es vender y trocar borricos y otras béstias [...] (RAE, 1734: 52; ERA, 1780: 501). Apenas no século XIX, o conceito é ressignificado para “Cierta raza de gentes errantes y sin domicilio fijo, que se cree ser descendientes de los egipcios” (ERA 1822: 412). Nos territórios portugueses, e no que se refere a pessoas, há também uma longa explicação religiosa para o conceito, o qual “[...] deu o vulgo a huns homens vagabundos, & embulteyros, que se fingem nacionaes do Egypto, & obrigados a peregrinar pelo mundo, sem assento, nem domicilio permanente [...]. Hoje são os Ciganos hum ajuntamento de Vádios de varias nações (Bluteau, 1712, v. 2: 311). A versão que Morais da Silva faz do Vocabulario de Bluteau do fim do século XVIII, por outro lado, identifica algumas especificidades culturais destes grupos: “[...] deste embuste vive, e de trocas, e baldrocas; ou de dançar, e cantar: vivem em bairro juntos, e tem alguns costumes particulares, e huma especie de Germania com que se entendem” (Silva, 1789, v. 1: 272; Diccionario da Lingua Brasileira, 1823: 240). No século XIX, o Dicionário Jurídico refere os documentos do Reino que proíbem e punem também com degredo para a África e para o Brasil os ciganos em território português (1825, v. 1: 198; Ordenações Filipinas, Livro V, Título LXIX: 1217).

No geral, há uma associação pejorativa no adjetivo de gitano/cigano (Díaz, 1846), mas também um reconhecimento de uma tendência a atividades de troca comercial de mercadorias, como animais e pessoas escravizadas – sobretudo em territórios coloniais. Nas fontes, o conceito varia em género e faz referência à etnia (ANTT, 1591– 1592), às suas habilidades de engano e persuasão de pessoas (Valdivielso, 1604; ANTT, 1741–1745), e quando remete às mulheres, pode também ter uma conotação sexualizada (Valdivielso, 1604; Salvá, 1846: 553). 

A historiografia confirma o processo de exclusão social dos grupos ciganos e a sua presença marcada no comércio de trocas (mas não apenas) ao longo da história (Ginzburg, 2006: 190; Cardoso e Ferreira, 2014: 107; Mattos e Grinberg, 2018: 197– 198). Por outro lado, discorda da origem geográfica dos grupos supostamente oriundos do Egito (i), e ainda sublinha a pluralidade de práticas sociais e culturais (ii). Há certa falta de registo documental no que toca aos ciganos, mas o mais certo é que não são grupos religiosos ou de uma mesma nacionalidade, senão grupos plurais organizados em comunidades, remontam ao século XV e são originalmente europeus (Sanchéz, 2018: 13): os Calon, os Rom e os Sinti (ou Manouch) (Teixeira, 2008: 10–11). Desde então, entre processos de assimilação forçada e/ou de invisibilização incentivada pelos diferentes poderes político-religiosos, os grupos ciganos revelam um vasto carácter de resistência histórica (Silva, 2014: 27) pela dupla via de sobrevivência e tradução cultural ao longos dos séculos.


REFERÊNCIAS

Dicionários

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Oudin, César, Tesoro de las dos lenguas francesa y española, París, Marc Orry, 1607. https://apps.rae.es/ntlle/SrvltGUILoginNtlle

Palet, Juan, Diccionario muy copioso de la lengua española y francesa [...], Paris, Matthieu Guillemot, 1604. https://apps.rae.es/ntlle/SrvltGUILoginNtlle

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Real Academia Española, Diccionario de la lengua castellana por la Real Academia Española, Madrid, Imprenta Nacional, 1822. https://apps.rae.es/ntlle/SrvltGUILoginNtlle

Salvá, Vicente, Nuevo diccionario de la lengua castellana, que comprende la última edición íntegra, muy rectificada y mejorada del publicado por la Academia Española, y unas veinte y seis mil voces, acepciones, frases y locuciones, entre ellas muchas americanas [...], Paris, Vicente Salvá, 1846. https://apps.rae.es/ntlle/SrvltGUILoginNtlle

Silva, António de Morais, Diccionario da Lingua Portugueza [...] A-K, v. 1, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.

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Fontes
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Bibliografia
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