REBELLION AND RESISTANCE IN THE IBERIAN EMPIRES, 16TH-19TH CENTURIES.

Crioulo/Crioulos*

Author: Gertrudes Silva de Oliveira

Affiliation: Universidade de Cabo Verde



O termo crioulo remete-nos para o contexto colonial e, sobretudo, para o sistema escravocrata, no âmbito do qual emergiu. Para a maioria dos lexicógrafos e etimologistas a palavra é de origem portuguesa, derivada do verbo criar (Coromina e Pascual, 1980: 243). No seu sentido original é um substantivo que se refere à pessoa nascida fora do lugar de origem dos seus progenitores. Há referências de que num primeiro momento teria sido usado para designar o negro/escravo nascido na casa do seu senhor. Constata-se, contudo, que seu significado foi se alterando e ampliando ao longo do tempo, considerando os diferentes espaços coloniais. Já no século XVI o vocábulo havia se generalizado para designar os descendentes de europeus e africanos nascidos nas colónias portuguesas e espanholas, o mestiço resultante do cruzamento entre o senhor branco e a escrava negra, bem como realidades culturais, materiais e imateriais recriados em determinados espaços socio-ecológicos de interação colonial. Destacam-se, neste âmbito, as línguas crioulas emergidas, nomeadamente, da interação entre as línguas europeias dos colonizadores e as autóctones e/ou trazidas pelos africanos escravizados. No Dictionnaire étymologique des créoles portugais d´Afrique, Rougé aponta referências do termo crioulo em documentos eclesiásticos tanto portugueses como espanhóis, do último quartel do século XVII, que deixam entender que a língua era conhecida na Guiné e teria sido aí introduzida por intérpretes ou chalonas (Rougé, 2004: 124).
Para além dos sentidos antrópico e linguístico, a crioulização designa uma realidade socio-histórica e intercultural complexa, integrando dimensões como hibridização cultural, resistência e cooptação e envolvendo, como refere Hall, questões de poder e problemas de emaranhamento (Hall, 2010).

A crioulização decorre de um encontro de culturas diferentes num espaço determinado, do qual resulta algo novo e “totalmente imprevisível” (Glissant, 2006, p. 37). Todavia, o processo cultural que lhe está subjacente se dá em situação de relações de poder profundamente assimétricas, sendo o contexto colonial e escravocrata, caracterizado pela dominação física e psicológica dos colonizados pela elite dominante, um dos fundamentos para a sua efetivação. No entanto, a crioulização atesta que os povos colonizados ou escravizados não se afundaram completamente nas culturas das elites dominantes. A formação de línguas e práticas culturais crioulas evidenciam o exercício de um poder por parte dos grupos dominados que, embora nem sempre percetível ou consciente, os permitiu ir adaptando às imposições e recriando suas crenças e práticas, subvertendo, assim, paulatinamente, a ordem hierárquica e impositiva colonial. Michel de Certeau explica como este poder impregna, subtilmente, a cultura popular revelando-se “num estilo de resistência moral,” numa “generosidade como revanche”, numa “ética de tenacidade” (Certeau, 1998: 88-89). Esta conceção do poder como fluido, “móvel, escorregadio, evasivo e fugitivo” (Bauman, 2000: 19) ou “elusivo” (Cohen e Sheringham, 2014), traz para o debate sobre a crioulização a dimensão de agência, criatividade e resistência por parte dos grupos e culturas consideradas subalternas.
Cabo Verde configura-se, provavelmente, como a sociedade crioula mais antiga no contexto colonial europeu, com uma crioulização dinâmica e holística que se expressa não apenas através da língua, mas na diversidade das manifestações culturais do seu povo, traduzindo no elemento que melhor caracteriza a sua identidade cultural. António Carreira defende a tese de que o crioulo se formou primeiramente em Cabo Verde onde a premente necessidade comunicativa entre os grupos em presença no âmbito da sociedade escravocrata emergente na ilha de Santiago, favoreceu o surgimento de um sistema de comunicação simplificado, estruturado a partir da língua do grupo dominador, conduzindo à formação do crioulo enquanto instrumento de comunicação que se generalizou para todas as camadas sociais e todo o território cabo-verdiano, considerando as condições históricas especificas por que passou o arquipélago. Neste contexto, o autor destaca o papel da Igreja Católica no desenvolvimento da língua crioula, dada à sua função primordial de ladinização dos escravos, nomeadamente sua catequização, batismo e aprendizagem de um ofício, antes da sua exportação para outras paragens (Carreira, 1982). 
Para além de ser língua materna dos cabo-verdianos o crioulo, em Cabo Verde, é sinónimo de cabo-verdiano. Mais do que alma desse povo, incorpora-se na pele, no olhar, nas expressões culturais como a música e tradições orais, revelando a história coletiva, o cotidiano, a identidade e a capacidade de resistência às adversidades e à opressão.
O carácter subversivo e resistente da crioulização cabo-verdiana, tanto na sua dimensão linguística como social e cultural, está patente na história da formação e desenvolvimento da sociedade de Cabo Verde, iniciando-se na emergência linguística, mestiçagem biológica e orientando-se para uma crioulização institucional e sociocultural (Cabral, 2001; Soares, 2005).

Este processo ocorreu, todavia, de forma conflituosa. Soares refere-se mesmo a uma “guerra de todos contra todos”, iniciado com “desordens graves entre as elites escravocratas rivais a propósito dos governos interinos” e desembocando-se “numa terra permanentemente amotinada”, “levantada em armas” (…)  “numa ilha rebelde” com o crescimento do homiziamento para o interior de Santiago de alguns pequenos senhores, considerados “malévolos e revoltosos que agregavam em torno de si forças privadas de forros e escravos fugidos” (Soares, 2005: 3). Estes, se tornarão cada vez mais presentes no interior da ilha, sobretudo por causa das frequentes fomes provocadas pelas estiagens, fator principal da libertação e da fuga de escravos em Cabo Verde. Estes são referenciados, geralmente, pela negativa em registos coevos, tendo sidos qualificados de “crioulos indómitos” considerando seus atos de rebeldia e estratégias de luta e resistências que iam desde a sua integração em milícias privadas dos terra tenentes e de régulos locais homiziados no interior da ilha, servindo nas lutas destes pelo poder e afirmação social à auto marginalização nas serranias de Santiago, resistindo a todas as tentativas de açambarcamento da sua liberdade, sujeitando-se a condições de sobrevivência muito difíceis, negando entregar a sua força de trabalho e rejeitando igualmente participar em atos para a manutenção  da ordem política colonial (Silva, 2001; Soares, 2005). 
A língua crioula produto desta interação, configura-se como um cimento maleável de unidade, ao lado da cultura material, das manifestações lúdicas, entretanto recriadas, bem como formas religiosas alternativas e sincréticas (Lang, Holm, Rougé e Soares). No sec. XIX e XX insurgem várias vozes denunciando a língua e as práticas culturais crioulas. Um dos comentários mais depreciativos sobre a língua crioula cabo-verdiana chega-nos de Chelmicki e Vernhagen que a rotularam de: “idioma perverso, corrupto e imperfeito sem construção nem gramática e que se não pode escrever” (…) mistura de palavras portuguesas e de gentios da Guiné e algumas francesas e inglesas (…) totalmente estranho e incompreensível ao ouvido” (Chelmicki e Vernhagen, 1841: 331-333). 
Apesar de todo o trabalho levado a cabo, desde o campo da literatura, pelos movimentos Pre-Claridoso, Claridoso e Nativista em defesa da língua crioula  como aquela que traduz a singularidade do povo e nação cabo-verdiana; apesar do importante trabalho cientifico e de valorização  da língua crioula cabo-verdiana que vem sendo produzido por numerosos especialistas nacionais e estrangeiros, a situação linguística ambivalente herdada e tão bem retratada por Dulce Duarte na sua obra seminal Cabo Verde: Bilinguismo ou diglossia? permanece ainda, na atualidade entre o português língua oficial e o crioulo língua materna (Duarte, 1998).

 * Palavra com origem num idioma não dominante dos impérios ibéricos.


REFERÊNCIAS

Dicionários
Corominas, Juan, e José Antonio Pascoal, Diccionario Crítico etimológico Castellano e Hispánico, Madrid, Gredos, 1980.

Rougé, J-L., Dictionnaire étymologique des créoles portugais d´Afrique, Paris,  Karthala, 2004

Bibliografia
Bauman, Z., Modernidade Líquida, Rio de Janeiro:  Zahar editora, 2001.

Cabral, I., Política e Sociedade: Ascensão de uma elite endógena, In Albuquerque, L. e Santos, M. E., coords., História Geral de Cabo Verde, vol. III, Lisboa, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 2001.

Carreira, A., O Crioulo de Cabo Verde, surto e expansão, Lisboa, Europam, 1982.

Chelmicki, J., e F. Varnhagen, Corografia cabo-verdiana ou Descrição Geográphico-Histórico da Província das Ilhas de Cabo Verde e Guiné, tomo II, Lisboa, Tip. C. da Cunha, 1841.

Cohen, R., O. Sheringham, Crioulização cotidiana e ecos diaspóricos: Resistência e cooptação em Cabo verde e Luisiana, Oxford, Universidade de Oxford, 2014.

Certeau, Michel de, A invenção do Cotidiano, 3ª ed., Petrópolis, editora Vozes, 1998.

Duarte, Dulce A., Bilinguismo ou Diglossia? As relações de Força entre o crioulo e o Português na Sociedade Cabo-verdiana, Praia: Spleen Edições, 1998.

Glissant, E., Tratado del todo-mundo. Barcelona: El Cobre, 2006.

Hall, Stuart, Creolité and the process of creolization in Cohen, R. e Toninato, P., The Creolization Reader, Studies in Mixed Identities and Cultures. London/New York: Routledge, 2010.

Lang, J., Holm, J., Rougé, J. L. e Soares, M. J., eds., Cabo Verde, origens da sua sociedade e do seu crioulo. Germany: GNV, 2006.

Silva, A. Correia e, “Da contestação social à transgressão cultural: forros e Fujões na sociedade escravocrata”, in ANAIS, vol. III, nº 1, abril de 2001. 

Soares, M. J., Crioulos Indómitos e Vadios: Identidade e Crioulização em Cabo Verde – Séculos XVII-XVIII. Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de  Antigo Regime: poderes e sociedades, Lisboa, IICT - Instituto de Investigação Científica Tropical, 2005.