REBELLION AND RESISTANCE IN THE IBERIAN EMPIRES, 16TH-19TH CENTURIES.

Apostasia/Apostata (ES) | Apostasia/Apóstata (PT)

Author: Kevin Carreira Soares

Affiliation: ICS-Universidade de Lisboa



O vocábulo apostasia remete para o abandono do Cristianismo e a adoção de outra religião ou sistema de crença, da parte de um convertido. Todavia, o termo apostasia foi também utilizado no âmbito militar, das ordens religiosas, e em sentido político, em diferentes contextos cronológicos. Assim, nos dicionários castelhanos e portugueses do século XVII, além de ser aplicado no sentido da renúncia ao catolicismo, o apóstata era também aquele que abandonava uma ordem castrense, referindo-se àqueles que tomavam o lugar do inimigo ou que desemparavam o seu capitão (Covarrubias 1611: 80; Rosal 1611: 58; Pereira 1697: 45); No século XVIII, o termo apóstata podia empregar-se também em relação aos membros das ordens religiosas que deixavam a obediência à sua congregação, de forma desordeira (Bluteau 1728; Morais 1789: 98; RAE 1726: I, 349; RAE 1770: II, 287; RAE 1780, II, 86). Em meados do século XIX, a palavra surgiu também associada ao afastamento de uma ideia ou partido políticos (Gaspar y Roig 1853: 188, Dominguez 1853: 151).

Encontram-se inúmeras referências à sua utilização no contexto dos impérios ibéricos. Por exemplo, no século XVII, dizia-se que alguns habitantes das Ilhas de Solor tinham apostatado (i.e. tinham abandonado a prática cristã após terem sido batizado), devido à perseguição de holandeses e de grupos muçulmanos (Relaçoes Svmmarias..., 315). Na mesma medida, também eram considerados apóstatas aqueles que, no âmbito das missões no império mogol, tinham regressado ao islamismo após a sua conversão, segundo uma carta do missionário frei Gaspar Afonso ao Provincial (DUP 1963, III: 238). Mas o vocábulo era particularmente recorrente nos processos inquisitoriais, quer da Inquisição espanhola, quer da portuguesa. Um de entre muitos exemplos é o de Maria Gomes, que fora cativa de Aldonça Gomes, tornando-se forra, moradora na cidade de Elvas. Maria seria presa em meados do século XVI no cárcere do Santo Ofício de Évora pelo crime de “heresia e apostasia”, porque, sendo cristã-nova, tinha regressado às práticas islâmicas (ANTT, TSO-IE/021/09177). Um caso distinto era o do cristão-velho Clemente Jordán, seguido no Tribunal da Inquisição das Canárias, entre 1637 e 1638. Jordán também seria condenado por apóstata e renegado na Argélia, tendo-se convertido ao Islamismo (AHN//INQUISICIÓN,1822, Exp.23).

Já no que diz respeito à sua aplicação no âmbito do abandono da regra religiosa, o termo era aplicado também pelas próprias ordens, como sucedeu na sentença proferida pelo definitório dos agostinhos descalços, a 18 de maio de 1830, contra frei Domingos, do convento de Porto de Mós, onde ficou declarado que “apostatou o reo segunda vez para evidir-se ao merecido castigo de seus acrescidos crimes” (Soares e Cabral 2017: 79-81).A evasão podia ser ainda mais explicíta, como tinha acontecido em Tortosa, mais de um século antes, com uns clérigos valencianos que fugiram da prisão, levando com eles um religioso apóstata (ACA//CONSEJO DE ARAGÓN, Legajos,0815,nº 005). Já em contexto político, é flagrante a interrogação “Costa Cabral é apostata?”, retirada de uma antologia de textos publicada em 1850, sobre a controversa figura da política portuguesa do século XIX, António Bernardo da Costa Cabral (Costa Cabral… 1850: 57).

Todavia, tendo presentes as dinâmicas de resistência nos impérios ibéricos, o termo apóstata é sobretudo utilizado no âmbito religioso, para se referir àqueles de origem europeia que se convertiam a religiões locais; aos judeus e muçulmanos convertidos ao Catolicismo e que regressavam às suas religiões originais, ou aos convertidos de origem extraeuropeia, que rejeitavam o Catolicismo após o seu batismo. Nestes últimos casos, a apostasia era frequentemente entendida como uma capitulação perante a pressão externa, que podia ser cultural, militar ou política.


REFERÊNCIAS

Dicionários
Bluteau, Rafael, Vocabulario de synonimos, e phrases portuguezas, Supplemento ao Vocabulário Portuguez e Latino, II, Lisboa, Patriarcal Officina de Musica, 1728

Covarrubias, Sebastián de, Tesoro de la lengua castellana o española, Madrid, Luis Sánchez, 1611.

Biblioteca Ilustrada de Gaspar y Roig. Diccionario enciclopédico de la lengua española, con todas las vozes, frases, refranes y locuciones usadas en España y las Américas Españolas, Madrid, Imprenta y Librería de Gaspar y Roig, 1853, 

Domínguez, Ramón Joaquín, Diccionario Nacional o Gran Diccionario Clásico de la Lengua Española, Madrid, París, Establecimiento de Mellado, 1853, 5ª edición. 2 vols. 

Morais, António de, Dicionario de Língua Portuguesa composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por António de Moraes Silva, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. 

Pereira, Bento, Prosodia in vocabularium bilingue, Latinum, et Lusitanum digesta..., Évora, Typographia Academiae, 1697, 7ª edição.

Real Academia Española (RAE), Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras cosas convenientes al uso de la lengua [...]. Compuesto por la Real Academia Española. Tomo segundo. Que contiene la letra C., Madrid, Imprenta de Francisco del Hierro, 1726. 

Real Academia Española (RAE), Diccionario de la lengua castellana por la Real Academia Española. Duodécima edición, Madrid, Madrid, Imprenta de D. Gregorio Hernando, 1884. 

Rosal, Francisco del, Origen y etymología de todos los vocablos originales de la Lengua Castellana. Obra inédita de el Dr. Francisco de el Rosal, médico natual de Córdova, copiada y puesta en claro puntualmente del mismo manuscrito original, que está casi ilegible, e ilustrada con alguna[s] notas y varias adiciones por el P. Fr. Miguel Zorita de Jesús María, religioso augustino recoleto, 1611.

Fontes
“Autos e confissões de Maria Gomes mourisca forra moradora na cidade de Elvas presa no cárcere deste Santo Ofício da Inquisição pelo crime de heresia e apostasia”, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Évora, proc. 9177 (TSO-IE/021/09177).

Costa Cabral: Passado, Presente, Futuro. Lisboa: [s.n.], 1850.

“De la fuga de la cárcel de Tortosa de unos clérigos valencianos, entre ellos un religioso”, Archivo de la Corona de Aragón (ACA), ACA//CONSEJO DE ARAGÓN, Legajos,0815,nº 005.

Documentação Ultramarina Portuguesa (DUP) Lisboa, Centro de Estudos Históricos ultramarinos, 1963, vol. III.

“Proceso de fe de Clemente Jordán”, Archivo Historico Nacional (AHN), AHN//INQUISICIÓN,1822,Exp.23.

Relações svmmarias de algvns serviços qve fizeraõ a Deos, & a estes Reynos, os Religiosos Dominicos das partes da India Oriental nestes anos próximos passados. Lisboa, Lourenço Caraesbeeck, 1635, publicado em Sá, Artur Basílio de, Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1958, 277-346.

Bibliografia
Soares, Kevin Carreira e Cabral, Beatriz Rodrigues. O Bom Jesus de Porto de Mós. Convento dos Agostinhos Descalços, Porto de Mós, Fábrica Paroquial de Porto de Mós, 2017.