REBELLION AND RESISTANCE IN THE IBERIAN EMPIRES, 16TH-19TH CENTURIES.

Vadio (PT)

Author: José Évora

Affiliation: Universidade de Cabo Verde

https://doi.org/10.60469/sap3-jb76


Na ilha de Santiago de Cabo Verde, ainda hoje, é comum utilizar o termo badio para designar o habitante do interior da ilha, em regra, visto como um indivíduo destemido, insubmisso e insurreto. Historicamente a origem deste termo, ao que tudo indica, remonta ao século XVI, altura em que se inicia a fuga de escravos, que, da cidade da Ribeira Grande, fugiam dos seus senhores e refugiavam-se no interior da ilha, em zonas de difícil acesso, numa espécie de comunidades quilombolas, preferindo “andar pelos matos a roubar do que irem apresentar-se a qualquer proprietário para lhes arrotearem os terrenos, (ANCV/SGG, lv.2, fl.222). E porque assim procediam, andando na vadiagem, veio-lhes a denominação de vadios que ainda hoje se conserva nos seus descendentes (Barros 1936: 49). Neste sentido, a palavra vadio, no caso em concreto, representava uma forma de designar uma ação de resistência por parte da população escravizada da ilha de Santiago.

No Corpus Lexicográfico do Português, que constitui a memória textual de referência dos séculos XVI a XIX, o termo vadio ocupa um lugar importante. No texto, Vocabularium billingue, Latinum, et Lusitanum digesta, de Prosodia (1697), a palavra aparece oito vezes, e descrita como errar, pecar, andar vadio, perdido ou vagabundo pelo que o vadio é apresentado como o fugitivo, o vagabundo ou o pedinte.  Nos dicionários espanhóis, não encontramos a palavra vadio, porém, quando fazemos um paralelismo com a palavra vagabundo, acima referenciada, encontrámo-la, por exemplo, no Diccionario Histórico de la Lengua Española-Diccionario de Autoridades (1726-1739), Tomo VI (1739). Nele, vagabundo é descrito como “ú ocioso, que anda de um lugar en outro, sin tener determinado domicílio, ú sin ofício, ni benefício.”  Informa-nos ainda que a palavra “es del latino vagabundus, ladrones” (MARQ.Gobern.lib.2, cap. 31 $ 1).

Relativamente ao uso desta palavra nas fontes da época e em diferentes contextos, nas que tivemos acesso, a palavra vadio é usada para caracterizar o cativo que escapava da propriedade do seu senhor, preferindo andar a monte, a vadiar. A título de exemplo, num relatório do século XVIII, inserto no Fundo Documental do Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde, o então Ouvidor  Geral, José da Costa Ribeiro, informa ao rei que “ os senhores das fazendas e das terras estão hoje pobres e não tem escravos para a fábrica delles, (…)pois ainda que pelo jornal de um dia se dê a um preto forro dois tostões, não há de ir trabalhar, nem servir e antes querem andar nus e roubar que sujeitar-se ao trabalho (ANCV/SGG, lv.2, fl.223). Por sua vez, no AHU encontramos referências a este segmento social, que “(…) intitulam-se ostensivamente vadios,” (AHU/Cabo Verde, cx. 33, doc. 46), ousam desobedecer às próprias autoridades instituídas como a Câmara da Ribeira Grande que reclama não haver “meios para se disciplinar tais "crioulos indómitos," que tornam “impraticável alguma forma de defesa e respeito (AHU/Cabo Verde, cx. 33, doc. 46). O então Governador Geral de Cabo Verde, insiste na necessidade de castigar “os muitos régulos que há por toda esta ilha” e manda mesmo atacar “três vadios (…) (AHU, Cabo Verde, Cx. 26, doc.1).

Na historiografia que trabalha o tema da resistência em Cabo Verde, a palavra vadio é bastamente usada. Ainda no período colonial, ela foi empregue por Chelmicki (1841), ao analisar a situação da vadiagem, que tanto lamentava o Ouvidor Geral José da Costa Ribeiro em 1731. Barcellos (1899/2003), procura explicar o fenómeno da fuga de escravos e do impacto negativo por que passava a agricultura no interior da ilha de Santiago até o século XIX, referindo-se, bastas vezes, à vadiagem, a mesma reflexão feita por Barros (1936). Após a independência nacional, António Carreira (1984/2000), analisa, em capítulo próprio, a situação dos escravos e nele a palavra vadio é sempre referenciada. Na obra coletiva, História Geral de Cabo Verde, Baleno (1991), faz o uso desta palavra ao analisar a composição social da ilha de Santiago a partir do século XVI, enquanto Silva (1995) a utiliza ao falar das Gentes das Águas: senhores, escravos e forros, também em referência à ilha de Santiago. Por sua vez, Santos (2001) recorre a esta palavra quando explica  os contornos da sociedade caboverdiana, “a primeira sociedade esclavagista do mundo atlântico em que a grande maioria dos escravos passou a condição de forros, provocando uma mudança social abrupta, substantivada numa nova realção: antigo senhor/antigo escravo, evoluindo rapidamente para a relação“homem poderoso”/forro,” sendo que “o homem poderoso ou homenm da governança mais representativo vai ser o coronel e o forro mais visível, o vadio (Santos 2001:147). Mais recentemente, Silva (2021), em referência ao século XVIII, a utiliza quando refere às terras devolutas e aos escravos ociosos (Silva 2021:113), numa altura em que “os forros vão constituir a principal fonte de insubordinação social” (Silva 2021: 211) no interior da ilha de Santiago.


REFERÊNCIAS

Dicionários
Diccionario Histórico de la Lengua Española- Diccionario de Autoridades... Tomo VI, Madrid, Em la Imprenta de la Real Académia Española. Porlos Herderos de Francisco de el Hierro, 1739. https://apps2.rae.es/DA.html

Pereira, Prosodia, Vocabularium billingue, Latinum, et Lusitanum digesta ….Septima editio auctior, Eborae, ex Typographia Academiae, 1697. http://clp.dlc.ua.pt/Inicio.aspx

Fontes manuscritas
“Livro de registo da Câmara da Ribeira Grande, Ilha de Santiago:” Arquivo Nacional de Cabo Verde (ANCV), Secretaria Geral do Governo (SGG), Livro 1, fl.145 v, 7 de fevereiro de 1701.

“Relatório do Ouvidor Geral Custódio Correa de Mattos:” Arquivo Nacional de Cabo Verde (ANCV), Secretaria Geral do Governo (SGG), Livro 2, fl.223).

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Cabo Verde, cx. 33, doc. 46, 23 de fevereiro de 1774.

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Cabo Verde, cx. 33, doc. 46, 23 de fevereiro de 1774.

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Cabo Verde, Cx. 26, doc. 1, 1 de janeiro de 1756.

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