REBELLION AND RESISTANCE IN THE IBERIAN EMPIRES, 16TH-19TH CENTURIES.

Lágrimas (ES) | Lágrimas (PT)

Author: André Godinho

Affiliation: ICS-Universidade de Lisboa

https://doi.org/10.60469/g7st-c904


Os dicionários históricos reflectiam as concepções humorais da fisiologia humana popularizadas entre os ibéricos na época moderna: as lágrimas eram descritas em ambas as línguas como partículas de humor pituitoso libertadas por uma contracção muscular causada por dor ou por contentamento (Bluteau 1716, v. 5: 22-24; RAE 1734, t. 4: 351-352). O fenómeno podia ser sincero ou fingido (vejam-se as “lágrimas de crocodilo” referidas por Rafael Bluteau) e as suas motivações eram identificáveis e moralizáveis: louvavam-se, por exemplo, as lágrimas de contrição e penitência, capazes de apagar as faltas do pecador e de afugentar os demónios (Bluteau 1716, v5: 22). No âmbito desta emotividade devocional, encontramos as lágrimas em descrições de preces, procissões, sermões, exéquias e conversões como manifestações públicas de sentimento, súplica ou êxtase. Em narrativas bíblicas e hagiográficas, valorizavam-se as lágrimas dos “perseguidos” como signo da opressão e martírio dos fiéis. O choro podia, assim, ser defendido como uma exibição justa de sofrimento face às provações urdidas pelos malignos. Ao mesmo tempo, argumentos que o desqualificassem enquanto demonstração de fraqueza espiritual podiam ser entendidos como um meio ocultar a dor causada pela perfídia (Calvo 1618: 4v-8, 14v-22).

Neste quadro, as lágrimas dos súbditos das coroas ibéricas foram usadas por alguns autores como demonstração visível de um governo injusto ou ilegítimo – vejam-se três exemplos. Nos primeiros meses do reinado português de Filipe II, um memorialista lisboeta registou os prantos públicos provocados pelas execuções dos “rebeldes” e pela entrada de um rei indesejado na cidade (Soares 1953: 193-196). Bartolomé de las Casas ilustrou a “destruição das Índias” pelos espanhóis com as lágrimas dos ameríndios que se mostravam desesperados com a violência e que imploravam por misericórdia (Las Casas 2006: 50, 58, 79, 129). Em finais do século XVIII, um tratado português sobre o ofício paroquial falava dos abusos, desigualdades e extorsões que provocavam a mendicidade e deixavam “muitos cidadãos” a derramar “lágrimas de sangue” (Anónimo 2008: 620-621). Nestas narrativas de usurpação dinástica, subjugação violenta e injustiça estrutural, encontramos as lágrimas como meio de publicar um descontentamento fundado numa dor visível e justa, contrariando as imagens de aceitação, lealdade e gratidão que enquadravam o poder legítimo na cultura política do Antigo Regime.


REFERÊNCIAS

Dicionários
Bluteau, Rafael, Vocabulario portuguez &; latino, áulico, anatómico, architectonico […], vol. 5, Lisboa, Officina de Pascoal da Sylva, 1716, http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/lagrima

Real Academia Española (RAE), Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras cosas convenientes al uso de la lengua [...], t. 4, Madrid, Imprenta de la Real Academia Española, 1734, https://play.google.com/books/reader?id=4HJUAAAAYAAJ&hl=pt_PT&pg=GBS.PA351.

Fontes impressas
Anónimo, “Observações sobre o ministerio parochial feitas por hum Parocho a instancias de outro no anno de 1796” in Maria Antónia Lopes e José Pedro Paiva (eds), Portugaliae monumenta misericordiarum, vol. 7, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2008, pp. 620-624. https://repositorio.ucp.pt/handle/10400.14/8638

Calvo, Pedro, Defensam das lagrimas dos iustos perseguidos e das sagradas religioens fruto das lagrimas de Christo, Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1618, http://purl.pt/14384/4/

Las Casas, Bartolomé de, Brevísima relación de la destrucción de las Indias, Edição e notas de José Miguel Martínez Torrejón, [s.l], Editorial Universidad de Antioquia, 2006.

Soares, Pero Roĩz, Memorial, Leitura e revisão de Manuel Lopes de Almeida, Coimbra, Imprensa de Universidade, 1953.