REBELLION AND RESISTANCE IN THE IBERIAN EMPIRES, 16TH-19TH CENTURIES.

Criollo (ES) | Crioulo (PT)

Author: Arlindo Manuel Caldeira

Affiliation: CHAM-NOVA/Univ. Aç

https://doi.org/10.60469/dqme-6q63


O vocábulo crioulo foi ganhando, ao longo dos tempos e à medida que se ia difundido pelos espaços de influência ibérica, uma marcada polissemia, com sentidos muitas vezes divergentes e até contraditórios. Referiremos apenas os principais. É comummente reconhecida a origem portuguesa da palavra, formada, desde o século XV, a partir do verbo criar e associada ao espaço da casa natal. É nesse sentido que, no início do século XVIII, o padre Rafael Bluteau fala em “galinha crioula”, explicando que, por essa designação, se entendia a galinha que não tinha sido “comprada de fora, mas nascida e criada em casa” (Bluteau 1712, v. II: 613). Fora desse âmbito doméstico, uma das primeiras vezes que detectamos o vocábulo, aplicado a espaços da colonização portuguesa, é na ilha de São Tomé, cerca de 1530. Trata-se da carta de perdão régio a um tal João Dias que estivera implicado na “assuada” promovida pelos “criollos da dita Jlha contra os homes bramquos”, isto é, dos naturais da ilha, neste caso sobretudo mestiços, contra os indivíduos chegados de Portugal. E o referido João Dias é identificado como “criollo, homem que vyue por seu trabalho morador na mynha Jlha de Sam tome” (ANTT, Chancelaria de D. João III, Perdões e Legitimações, Livro 19, fl. 193v-194).

Tudo leva a crer que, nesse caso e ao contrário do que pode aparentar, a palavra era ainda aplicada em função da naturalidade e não da cor da pele, mas seria, seguramente, nos arquipélagos de Cabo Verde e de São Tomé e no Brasil, a partir do contacto com a população de origem africana, maioritariamente escravizada, que a palavra passaria, em português, a ser circunscrita a um grupo específico. É já nesse sentido que o referido padre Bluteau, no seu Vocabulário, definirá crioulo, na entrada principal dessa palavra, como o “escravo que nasceu em casa do seu senhor” (Bluteau 1712, v. II: 613). Porém, na documentação portuguesa dos séculos XVI a XVIII, além dos escravizados, independentemente da cor da pele, a palavra também pode surgir, de maneira pontual, associada às pessoas forras (crioulo forro). No Brasil, os escravizados crioulos aparecem ao lado dos nascidos em África em quase todas as revoltas e, em pelo menos uma delas, a que teve lugar em duas fazendas da vila de Guaraparim, no sul da capitania do Espírito Santo, em 1811, foram mesmo protagonistas únicos (Reis e Santos 2021: 16). Também na ilha de São Tomé, foi grande a sua intervenção em acções de resistência, sendo nomeadamente um crioulo chamado Amador, trabalhador das roças, quem liderou a insurreição de 1595, a maior de todas as lutas de escravizados que tiveram lugar nessa ilha (Caldeira 2004: 132-133).

No entanto, o vocábulo, no seu sentido original, seguira outros caminhos, e, na América hispânica, sob a forma criollos, passou a designar também um grupo social, mas não o dos escravizados (a não ser pontualmente) e sim o dos europeus, sobretudo os de origem espanhola, que tinham já nascido na América. Nessa acepção, aparece de forma clara em dicionários de espanhol e outras línguas, tais como o Vocabolario español-italiano, de Lorenzo Franciosini Florentín, publicado em 1670 (Florentín 1670: 78,1), o Diccionario castellano y portuguez para facilitar a los curiosos la noticia de la lengua latina, de Rafael Bluteau, de 1721 (Bluteau 1721: 41,2) e o Diccionario castellano con las voces de ciencias y artes y  sus correspondientes en las tres lenguas francesa, latina e italiana de Esteban Terreros y Pando (Terreros y Pando 1767: 550,1), bem como no Diccionario de Lengua Castellana, no qual se explica, aliás, que “crioulo” era uma “voz inventada de los Españoles Conquistadores de las Indias y comunicadas por ellos en España” (RAE 1629: 661,1).

Embora pertencendo muitas vezes à elite económica, nomeadamente de grandes proprietários, os criollos sul-americanos tiveram um papel importante na resistência aos “peninsulares” e às decisões do Estado espanhol e, mais tarde, nos movimentos independentistas. O termo crioulos ou línguas crioulas é também usado para designar as “línguas naturais, de formação rápida, criadas pela necessidade de expressão e comunicação plena entre indivíduos inseridos em comunidades multilingues relativamente estáveis” (Pereira 1974: 118). Existe ou existiu um número apreciável de línguas crioulas de base portuguesa (em que a língua lexificadora é o português) na África e na Ásia. Na África, são actualmente falados crioulos “portugueses” em Cabo Verde (Kriolu ou Kauberdianu), na Guiné-Bissau (Kriol), em São Tomé (Forro ou Lungwa Santome e Angolar ou Lunga Ngola), Príncipe (Principense ou Lung’Ie) e Annobón (Fa d’Ambô). Na América central, o crioulo designado por Papiamentu, é normalmente considerado de base mista, uma vez que o contributo lexical fundamental é partilhado entre o português e o castelhano. Por sua vez, é sobretudo francesa a base lexical do créole (Kreyòl Ayisyen) falado no Haiti e noutras ilhas das Caraíbas.

A partir do trabalho dos sociolinguistas, as outras ciências sociais, embora de forma não consensual, adoptaram o conceito de crioulização para caracterizar os processos de hibridização, isto é, de formação das novas unidades socioculturais que, em espaços de dominação colonial europeia, resultaram do encontro de culturas, nomeadamente, nos territórios já habitados, da resistência inicial das sociedades locais à aculturação forçada e unidireccional. Na Argentina, designa-se por criollismo uma corrente artística e literária do século XIX que valorizava os contributos locais e recusava os padrões europeus.


REFERÊNCIAS

Dicionários
Bluteau, Rafael, Vocabulário Portuguez e Latino..., vol. II, Coimbra, no Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712. http://clp.dlc.ua.pt/DICIweb/default.asp?url=Ler&Serie=27

Bluteau, Rafael, Diccionario castellano y portuguez para facilitar a los curiosos la noticia de la lengua latina, Lisboa, Pascoal da Sylva, 1721.

Franciosini Florentín, Lorenzo, Vocabolario español-italiano, ahora nuevamente sacado a luz [...]. Segunda parte. Roma, Iuan Pablo Profilio, 1620.

Real Academia Española (RAE), Diccionario de la lengua castellana, en que se explica el verdadero sentido de las voces, su naturaleza y calidad, con las phrases o modos de hablar, los proverbios o refranes, y otras cosas convenientes al uso de la lengua. Tomo quinto, Madrid, Real Academia Española, 1729. http://ntlle.rae.es/ntlle/

Fontes manuscritas
“Carta de perdão a João Dias”, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Chancelaria de D. João III, Perdões e Legitimações, Livro 19, fl. 193v-194, 17 de Outubro de 1552.

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